Previdência complementar dos servidores: artigo aponta inconstitucionalidade

O regime de previdência complementar para servidores é uma realidade que, embora de enorme importância não apenas para o equilíbrio das contas públicas como também para a efetivação de um sistema previdenciário sustentável e uniforme para a generalidade dos trabalhadores brasileiros, pode ser considerado ainda bastante recente, eis que foi introduzido entre nós nas Reformas passadas de 1998 e 2003 (governos FHC e Lula) para permitir, em suma, que se pusesse fim, ao menos no que tange aos novos (futuros) servidores ingressantes, às aposentadorias integrais que oneram de modo crescente os Tesouros dos entes federativos e, assim, toda a sociedade.
 
Esse novo regime complementar está hoje em funcionamento efetivo apenas para os servidores públicos federais (alcançando os que entraram na União a partir de 2013[1]) e também de alguns poucos Estados da federação (SP, RJ, ES, MG, BA, RS e SC), onde então os novos servidores que ingressaram posteriormente à implantação do novo regime[2] passarão a receber dos cofres públicos aposentadorias de valor máximo limitado ao mesmo valor-teto do INSS (R$ 5.531,31) e, se quiserem ganhar mais do que isso, têm que contribuir (facultativamente, como é característico na previdência complementar) para uma entidade fechada de previdência sem fins lucrativos, um “fundo de pensão”, específico dos servidores públicos de cada ente federativo (U/E/DF/M), visando a complementar sua aposentadoria (p. ex., quem ganha 20.531,31, contribui juntamente com seu "empregador" com um percentual aplicado sobre a diferença restante de 15.000,00, para buscar obter uma aposentadoria parecida com este último valor a título de complementação privada para o servidor que optou por ser participante do regime).
O Projeto atual de Reforma Previdenciária (PEC n. 287) prevê duas alterações que dizem respeito a esta matéria.

 

A primeira delas mexe no § 14 do art. 40, para tornar obrigatória (hoje é apenas facultativa) a adoção do mesmo valor-teto do INSS paralelamente à criação de regime de previdência complementar para Estados e Municípios que tenham optado por organizar por lei (o que ainda hoje se considera, por sua vez, também uma faculdade como alternativa de vinculação ao regime geral do INSS) regimes próprios de previdência para seus servidores efetivos. Não temos objeção quanto a este ponto, que, caso venha a ser aprovado como está, na prática, fará com que restem limitados os valores das aposentadorias e pensões dos futuros servidores públicos que ingressarem após a implementação do novo regime complementar nos Municípios e nos Estados que ainda não o fizeram (cumprindo registrar que o Projeto prevê, em seu art. 16, que os entes federativos terão o prazo de dois anos a partir da eventual promulgação da Emenda para promover tal implementação).

 

A segunda alteração que o Projeto pretende impor na matéria (regime de previdência complementar de servidores públicos) atinge especificamente a redação do § 15 do art. 40 do texto constitucional. Como é este o ponto que aqui nos interessa trazer à reflexão, convêm que fique claro o que estaria sendo alterado, de modo que é importante transcrever a redação atual e a proposta para alteração:

 

REDAÇÃO ATUAL:
 
§ 15. O regime de previdência complementar de que trata o § 14 será instituído por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, observado o disposto no art. 202 e seus parágrafos, no que couber, por intermédio de entidades fechadas de previdência complementar, de natureza pública, que oferecerão aos respectivos participantes planos de benefícios somente na modalidade de contribuição definida.
REDAÇÃO PROPOSTA PELA PEC N. 287:

 

§ 15. O regime de previdência complementar de que trata o § 14 será instituído por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo e oferecerá aos participantes planos de benefícios somente na modalidade de contribuição definida, observado o disposto no art. 202.

 

Na prática, tal alteração permite que o regime complementar dos servidores (aí incluídos sempre os chamados membros de Poder, vale dizer, Magistrados, Membros de Ministério Público e os Conselheiros, Procuradores e Auditores de Tribunais de Conta)  seja gerido não mais por entidades fechadas (e, mais que isso, as fechadas especificamente qualificadas como "de natureza pública"), mas por quaisquer entidades abertas de previdência privada, as quais, como se sabe, diferenciam-se por terem fins lucrativos, acesso aberto a qualquer pessoa física e ainda por não contarem legalmente com participação dos participantes (trabalhadores) e patrocinadores (empregadores) nos órgãos de comando -- conselho deliberativo ou de administração e conselho fiscal -- da entidade previdenciária.

 

Pois bem, essa segunda das alterações que a PEC n. 287 impõe à matéria, diferentemente da primeira, parece-nos problemática, não apenas por razões de mérito (diante de ponderadas contraindicações econômicas e políticas à sua adoção) mas, inclusive, por ser tecnicamente inconstitucional. Vejamos por que, concentrando-nos sobretudo neste último aspecto técnico.

 

Em primeiro lugar, a redação que consta do Projeto, se aprovado do jeito que está, juridicamente não levaria ao acima anunciado efeito de excluir do campo exclusivo de atuação das entidades fechadas a operação de planos complementares de servidores, pois o art. 202 da Constituição é e continua a ser aplicável ao assunto (note-se que a menção a tal dispositivo continua, aliás e como não poderia deixar de ser, expressa no Projeto) e, nele, está claro que o governo e suas estatais só podem manter relação de previdência complementar com seus trabalhadores por meio de entidades fechadas, as sem fins lucrativos[3]. E na racionalidade dessa disposição constitucional está subjacente, claro, a idéia de que não é papel do governo destinar recursos, na gestão da sua própria máquina, para alimentar o lucro de entes tipicamente privados (sociedades anônimas) que atuam em mercado, de modo a evitar que o Estado acabe intervindo indevidamente no equilíbrio da atividade privada, assegurado no art. 170 da Constituição.

 

Residualmente, registre-se que entidades lucrativas do mercado acabam tornando a despesa com a gestão administrativa dos planos de benefícios mais onerosa, e como consequência o investimento que o Poder Público tem de fazer para assegurar a complementação previdenciária de seu pessoal será mais caro e irracional. Assim, a rigor, o efeito será o oposto ao que se espera de uma abertura para a competição: planos mais caros para servidores e governo, e aposentadorias menores àqueles participantes, na medida em que, evidentemente, parte da rentabilidade dos investimentos dos planos terá de ser transformada em lucro da entidade para distribuição entre seus acionistas e, pior, não revertendo integralmente para a reserva de formação das aposentadorias dos beneficiários, como ocorre no caso das entidades fechadas, necessariamente organizadas em tom autogestionário, sem fins lucrativos.

 

Um segundo aspecto essencial que, segundo cremos, ofenderá abertamente a Constituição decorre do fato de que, pela regra atual, por serem entidades fechadas (que são fundações, não sociedades anônimas como as entidades abertas) submetidas ao regime especial dos §§ 3º e seguintes do art. 202 da Constituição e da Lei Complementar n. 109/01, os servidores públicos e o patrocinador (o governo "empregador") têm o direito de escolher a metade (paridade de gestão) dos membros dos Conselhos Deliberativo e Fiscal das fundações de previdência complementar, sendo que os representantes dos servidores são escolhidos por eleição direta, entre os próprios participantes do plano (os do governo são por ele indicados). Ora, isto simplesmente não existe no mercado privado para o qual pretende o Projeto abrir a gestão do regime complementar de servidores, retirando da administração do plano o marcante diferencial de participação democrática dos destinatários da proteção (patrocinadores e participantes), que se acha assegurada (e aqui se está diante de direito fundamental, configurador assim de verdadeira cláusula pétrea) pela Constituição, nos arts. 10[4] e 194, VII[5], e por isso mesmo hoje replicada na redação do art. 202, § 6º [6] (com o qual igualmente passaria a se chocar, caso aprovado o texto proposto na PEC n. 287).

 

Vale a pena referir, ainda que brevemente, que o direito à participação democrática em fundos de pensão que orbitem em torno de órgãos direta (seja na Administração Pública direta ou autárquica) ou indiretamente (como ocorre ainda que potencialmente em menor grau nas estatais) relacionados ao Poder Público é algo de enorme e especial importância, já que, diferentemente daquilo que se passa no campo das fundações de previdência que poderíamos chamar de "puramente privadas", há aqui claramente um risco maior de ingerência política diante da multiplicidade de papéis do Estado na relação de previdência complementar, na medida em que ele é, além de o próprio patrocinador do plano a seus trabalhadores, também e a um só tempo o órgão fiscalizador, o órgão regulador do sistema e inclusive particularmente naquilo que diz respeito aos investimentos (geralmente vultosos dos fundos de pensão "públicos")[7], o empreendedor de grandes obras públicas que precisam de financiamento privado, o emissor de títulos públicos através dos quais financia sua dívida, etc. É exatamente aí que reside, aliás, a racionalidade das vigentes disposições tanto dos §§ 3º a 6º do art. 202 da Constituição, quanto -- embora paradoxalmente -- da referência à "natureza pública" (que a PEC visa exterminar) da pessoa jurídica privada que é a entidade fechada a que se refere a vigente redação do § 15 do art. 40 da Constituição Federal.

 

Registre-se, aliás, que, após passados mais de quatro anos da implantação dos pioneiros regimes de previdência complementar de servidores do Estado de São Paulo e da União (em experiência bem sucedida e, mais, com boa aceitação que começa a se formar entre os próprios servidores públicos participantes, o que não foi fácil de se conquistar ante o sentimento de perda reinante para uma categoria historicamente atrelada à tradição de aposentadorias públicas integrais), tem-se já uma considerável formação inicial de reservas garantidoras das futuras aposentadorias que vem sendo administrada pela Funpresp (eis o nome da Fundação de Previdência  Complementar dos Servidores no caso da União) e pelas demais entidades estaduais existentes, de modo que seria evidente o abalo da confiança no ambiente desse considerável universo de servidores que a aprovação da medida proposta (caso fosse ela possível, o que cremos já ter demonstrado não ser o caso) traria a essa trilha histórica que mal se acaba de iniciar a percorrer no rumo de uma equalização de sistemas previdenciários a todos os brasileiros, em nome não apenas da sustentabilidade como da justiça que devem permear a construção do futuro modelo previdenciário brasileiro, em atenção, inclusive, às supremas diretrizes de universalidade, uniformidade e, em suma, de justiça social preconizadas pela Constituição (cf. arts. 194, parágrafo único, incisos I e II, e 193).

 

Diga-se, por fim, que o modelo atualmente válido para previdência complementar de servidores, gerido por entidades fechadas, já assegura os mesmos benefícios fiscais e da gestão profissional da poupança previdenciária, vantagens que geralmente são apontadas pelos defensores da abertura do modelo às entidades ditas de mercado.
 
Portanto, como se viu, a alteração que o Projeto atual de Reforma da Previdência Social pretende impor ao § 15 do art. 40 do texto constitucional choca-se com dispositivos claros e fundamentais da própria Constituição, o que -- aliado a outras razões de inconveniência política e racionalidade econômica -- deve levar à rejeição da proposta em questão.
 
*Daniel Pulino (Professor de Direito Previdenciário da PUC-SP e membro eleito do Conselho Deliberativo da Funpresp-Exe) e Ivan Jorge Bechara Filho (Pós-graduado pela Universidad de Alcalá e University College London) são Procuradores Federais de carreira e participantes da Funpresp-Exe.

 

[1] Segundo o entendimento que acabou sendo adotado no âmbito da União, são a rigor diferentes as datas a partir das quais se deve considerar vigente o novo regime complementar para os servidores públicos ingressantes em cada um dos Poderes no ano de 2013, de acordo com as datas de aprovação, pela Previc, dos planos de benefícios. Assim, para os servidores do Poder Executivo federal (Administração direta e autarquias), o marco a ser considerado é o dia 05 de fevereiro de 2013; para os servidores do Poder Legislativo federal (Câmara dos Deputados, Senado e TCU), o dia 07 de maio de 2013; finalmente, para os servidores do Poder Judiciário e Ministério Público da União, o marco considerado foi o dia 14 de outubro de 2013.

 

[2]  Ou então os servidores antigos que optaram pela migração do regime público para o complementar, valendo-se da faculdade que lhes assegurou o art. 40, § 16 da Constituição e, particularmente no caso dos servidores federais, também a Lei n. 12.618/12 (que permitiu a opção por 2 anos, até meados de 2015). Tal prazo foi reaberto pela Lei n. 13.328/16, de modo que os servidores federais ligados ao antigo regime previdenciário público ainda podem optar por migrar para o novo regime complementar até o dia 28/07/2018.

 

[3] Art. 202. (...) § 4º Lei complementar disciplinará a relação entre a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, inclusive suas autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas controladas direta ou indiretamente, enquanto patrocinadoras de entidades fechadas de previdência privada, e suas respectivas entidades fechadas de previdência privada.    
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[4] Art. 10. É assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação.

 

[5] Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: I- (...); VII- caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

 

[6] Art. 202. (...) § 6º. A lei complementar a que se refere o § 4° deste artigo estabelecerá os requisitos para a designação dos membros das diretorias das entidades fechadas de previdência privada e disciplinará a inserção dos participantes nos colegiados e instâncias de decisão em que seus interesses sejam objeto de discussão e deliberação.

 

[7] Invoque-se, por todos, o que dispõem os arts. 21, VIII, da CF ("compete privativamente à união...administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada"), 9º da LC n. 109/01 ("Art. 9o As entidades de previdência complementar constituirão reservas técnicas, provisões e fundos, de conformidade com os critérios e normas fixados pelo órgão regulador e fiscalizador. § 1o A aplicação dos recursos correspondentes às reservas, às provisões e aos fundos de que trata o caput será feita conforme diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional"), a desaguar na atualmente vigente Resolução n. 3.792/09 do Conselho Monetário Nacional (que " dispõe sobre as diretrizes de aplicação dos recursos garantidores dos planos administrados pelas entidades fechadas de previdência complementa").