Previdência corre risco, mesmo com suspensão da Reforma

Reportagem: Joana Zanotto

Um sistema de previdência desigual, sem Ministério e com o INSS em desmonte. Mesmo com suspensão da Reforma da Previdência, o acesso à seguridade social da população se torna cada vez mais difícil

Nesta segunda-feira (19/02), diversas categorias pararam pelo Brasil em manifesto contra a Reforma da Previdência. A PEC 287/2016 estava agendada para ser votada na data, mas a tramitação da emenda foi suspensa do Congresso. O decreto de intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro impede mudanças na Constituição. Mesmo com a Proposta em suspensão, uma nova agenda de projetos foi apresentada via medidas provisórias que tratam de temas já em tramitação. Alguns pontos da previdência podem ser antecipadamente votados dessa forma.

A reforma foi colocada desde o início do mandato Temer, em maio de 2016, como uma prioridade do novo governo. O desmantelamento do INSS em curso e a extinção do Ministério da Previdência vão ao encontro da política de retenção de gastos na pasta e alertam os movimentos sindicais e sociais.

Em Florianópolis, onde vários setores, como trabalhadoras e trabalhadores do transporte público, do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e da Companhia de Melhoramentos da Capital (Comcap), aderiram à greve, houve repressão do Legislativo. A Câmara de Vereadores aprovou uma moção de repúdio, na sessão de quarta (21/02), contra o Sindicato dos Trabalhadores do Transporte Urbano (Sintraturb) da região metropolitana e deve votar na próxima segunda (26/02) uma moção contra a Central Única dos Trabalhadores (CUT) em razão da paralisação. O texto foi proposto pelo vereador Bruno Souza (PSB), do grupo neoliberal Movimento Brasil Livre (MBL), mesmo propositor de projeto rechaçado no dia anterior para revogar lei de 1994 que declara capitais catarinense e cubana cidades-irmãs.

O MARUIM entrevistou três pessoas para explicar mais o desmonte do INSS, a situação previdenciária e a reforma e a política econômica adotada no país: a assistente social do INSS/SC Edivane de Jesus, o diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde e Previdência do Serviço Público Federal no estado João Paulo Silvestre e o economista co-autor do manifesto “Economistas pelo Brasil” Sammer Siman.

MARUIM: No seu artigo “A previdência social e o trabalhador: entre o acesso ao direito e a contribuição“, você fala sobre uma parcela da população sem acesso à Previdência Social, num contexto de crescimento da quantidade de trabalhadores autônomos no país. Além das pessoas que ficam para fora do sistema formal – que não contribuem de forma direta ao fundo – responsáveis pela nossa riqueza acumulada e giro de nossa economia, a desigualdade social se acentua na arrecadação tributária por ser centrada em tributos indiretos. Isso permite que os mais pobres paguem proporcionalmente mais tributos em relação à sua renda que os mais ricos. Você poderia explicar essas desigualdades?

Edivane: Historicamente, o financiamento tributário no Brasil teve características regressivas, sendo formado por tributos indiretos, que incidem sobre o consumo, e pela tributação direta sobre os salários. Neste sentido, a regressividade da tributação penaliza os contribuintes de menor poder aquisitivo, uma vez que tem relação inversa com o patamar de renda do contribuinte e acaba por contribuir para a ampliação da, já alarmante, desigualdade do país. A sociedade brasileira desconhece as características da carga tributária, sabe apenas que paga muito, porque isso é frequentemente alardeado pelos meios de comunicação. O que a mídia defende, no entanto, é a desoneração do grande capital, medidas tributárias que venham a beneficiar, ainda mais, grandes empresas e que ameaçam, inclusive, os parcos direitos conquistados pela classe trabalhadora.

Em relação à previdência social, este quadro é mais crítico. Dentro das políticas que compõe a seguridade social no país, a previdência possui a obrigatoriedade da contribuição direta. Assalariados contribuem compulsoriamente, no entanto, a formalização do trabalho é baixa no Brasil. Quase metade da população brasileira desenvolve suas atividades na informalidade, de forma extremamente precarizada. Sem condições objetivas de recolher suas contribuições por conta própria, não acessa à proteção social, especialmente quando se trata de política de previdência. Estes trabalhadores e trabalhadoras adoecem, acidentam-se, engravidam, cumprem pena, envelhecem e morrem, ou seja, estão sujeitos a vivenciarem momentos em sua vida em que não mais poderão obter o próprio sustento e garantir o sustento de sua família, por meio do trabalho.

Essa exigência da contributividade para o acesso à Previdência Social, no entanto, é extremamente contraditória, tendo em vista que os recursos que custeiam os benefícios pagos pela política são provenientes do fundo público para a Seguridade Social. Este fundo, por sua vez, além das contribuições diretas de trabalhadores e empregadores, é formado por outras receitas provenientes de tributos, repassados aos próprios trabalhadores, embutidos no preço dos itens de consumo. O que significa dizer que todos, ainda que indiretamente, todos os trabalhadores brasileiros pagam previdência, mesmo que pouco mais da metade consiga usufruir de seus benefícios.

MARUIM: Como as mudanças na Reforma da Previdência podem acentuar a desigualdade no sistema?

Edivane: A proposta da reforma da previdência, somada às recentes alterações na legislação trabalhista, vem piorar ainda mais este quadro. A reforma trabalhista aprovada pelo governo retira direitos e abre precedente para maior precarização/informalização do trabalho. Na outra ponta, a reforma da previdência, retira benefícios, aumenta a idade para acesso a aposentadoria e exige mais tempo de contribuição. Em suma, a soma das duas reformas, trabalhista e previdenciária, iniviabiliza o acesso à proteção previdenciária, em especial à aposentadoria, para a esmagadora maioria da classe trabalhadora brasileira.

MARUIM: A Reforma da Previdência vem acompanhada por outras políticas de desmonte da Previdência Social no país. Como o INSS está sendo afetado?

João Paulo: Junto a Reforma da Previdência, o governo Temer, na perspectiva de destruir a previdência pública, está desmantelando também a instituição que garante a previdência pública que é o próprio INSS. De 2016 para 2017, por exemplo, o orçamento para a estrutura do INSS caiu cerca de 90%. Faz algum tempo que não abrem vagas decentes em concursos, as pessoas chamadas não cobrem nem de longe o déficit que temos com servidores. O que faz com quê quem marque uma aposentadoria hoje por telefone possa ser atendido apenas daqui a quatro, cinco meses. E a perspectiva é que esse número caia pela metade nos próximos dois, três anos. A gente tinha há dois anos 37 mil servidores, hoje somos cerca de 32 mil e até 2020 a quantidade deve cair um pouco mais que a metade. Temos uma categoria envelhecida se aposentando.

As condições de trabalho no INSS e do assegurado de acessar os direitos vem piorando de lá pra cá, com risco de fechamento de agências. As pessoas chegam hoje em uma agência para ser atendido e tirar uma informação e fica três horas esperando. Isso quando não são encaminhadas para canais remotos, os atravessadores e advogados, pessoas que vão cobrar por serviços que teoricamente são públicos e deveriam ser garantidos por uma agência do INSS.

Uma das primeiras medidas do governo Temer foi extinguir o Ministério da Previdência em 2016, passando a Secretaria de Previdência Social ao Ministério da Fazenda e o INSS ao Ministério de Desenvolvimento Social Agrário. Então a secretaria, que é a parte que cuida da arrecadação e de todo financiamento da previdência social, foi separada do INSS, que é a autarquia que garante os benefícios à população. O orçamento da previdência foi retirado de quem conduz a política pública da previdência e ficou mais perto do setor financeiro, de quem paga os juros das dívidas públicas aos bancos.

MARUIM: Além da aposentadoria outros direitos da Seguridade Social estão em jogo, não é mesmo?

João Paulo: A questão do auxílio-doença é muito importante. A gestão do INSS proibiu os agentes do instituto de entregarem os resultados da perícia ao licenciado no mesmo dia de sua realização. A pessoa portanto tem acesso a ela apenas no dia seguinte. Como a data fim para receber o benefício é geralmente no dia da perícia, a pessoa acaba perdendo o benefício. Uma nova perícia tem que ser marcada em 30 dias para ser agendada mais ou menos 40 dias depois. Muitas vezes a pessoa afastada do emprego, sem receber nada pela empresa, não consegue ter acesso ao seu benefício.

MARUIM: Como se situam os trabalhadores do INSS em meio a tudo isso?

João Paulo: Os trabalhadores do INSS estão sendo atacados de várias maneiras. O governo mente quando fala que o servidor público é o culpado pelo rombo na previdência. Existe hoje no Regime Próprio da Previdência, ou seja, na previdência dos servidores públicos federais uma pequena diferença sim entre o que se arrecada e o que se paga mas não chega nem perto do que o governo fala, que seriam 200 bilhões quando o déficit é de 40 bilhões. Desde 2003, a reforma da previdência do Lula (PT) retirou diversos direitos. Em março de 2013 os servidores passaram a um regime previdenciário com as mesmas regras do privado, sendo que não temos os mesmos direitos garantidos na Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) como Fundo de Garantia. Nossos direitos previdenciários estão sendo atacados enquanto somos colocados como inimigos do povo. Junto a isso a nossa instituição está sendo destruída, estamos com aumento muito grande nas demandas de trabalho e o número de servidores diminuindo drasticamente. Isso joga cada vez mais as pessoas para a previdência privada.

MARUIM: O manifesto “Economistas pelo Brasil” assinado por um conjunto de economistas e profissionais da área econômica ao qual você integra condensa, em linhas gerais, o que seria, segundo o texto, uma política econômica da maioria. A Reforma da Previdência segue por sua vez o fluxo contrário dificultando o acesso à aposentadoria da população. O que seria uma política econômica voltada para a maioria? E o que se esperaria de uma Reforma da Previdência movida nesse sentido?

Sammer: Uma política econômica da maioria é aquela que encontra as necessidades e aspirações do povo trabalhador brasileiro, organizando nossa riqueza e nossa capacidade de trabalho para dignidade do povo e não para o enriquecimento dos bancos. A previdência é um exemplo de sistema de proteção social que atende ao povo, na medida em que protege minimamente mais de 60 milhões de trabalhadores brasileiros, garantindo conquistas civilizatórias como o direito de se aposentar. E o que querem fazer com ela no que se convencionou chamar de reforma é aumentar a tragédia do povo, dificultar ou eliminar seu acesso à aposentadoria para que as pessoas comprem planos de previdência privado e engordem ainda mais os lucros dos bancos. Uma previdência que vá de encontro aos interesses da maioria deve ser fortalecida, como na cobrança por parte do governo dos mais de 400 bilhões devidos ao sistema por grandes empresas.

MARUIM: Na sua opinião como a mídia contribui na consolidação de um discurso hegemônico de necessidade da Reforma Previdenciária contra a crise econômica?

Sammer: A mídia é um sistema de poder que toca a música de acordo com aqueles que pagam sua banda, e no caso brasileiro seu grande financiador são os bancos, o chamado sistema financeiro. O que a mídia faz é repetir mil vezes uma mentira até que ela se torne verdade, a exemplo do alardeado déficit da previdência que já foi comprovado por meio de CPI que não existe.Outra mentira muito contada é que a previdência consome mais de metade do orçamento da União, quando na verdade ela consome pouco mais de 20%, o que eles fazem de maneira muito cínica nos jornais é retirar os gastos com os juros e amortizações da dívida pública do orçamento e com isso criar uma ilusão contábil para convencer as pessoas que a previdência é o vilão das contas públicas. Mas bem sabemos que se tem um vilão nessa história são estes juros e amortizações da dívida que só fazem engordar o lucro dos bancos.

MARUIM: As reformas de desmonte do serviço público e corte nos direitos trabalhistas estão sendo aprovadas mesmo sob forte resistência de setores da sociedade, como trabalhadores organizados, jovens e mulheres. Quais as estratégias que o governo está usando? E quais os os prejuízos para o debate saudável?

Sammer: No caso da reforma trabalhista o governo usou de uma mentira deslavada, disse aos brasileiros que a reforma seria necessária para criar mais empregos. Não explicaram os mais de 100 pontos da reforma que dilapidam garantias históricas da CLT e ampliam as formas de precarização do trabalho, e que na prática já estão mostrando que só fazem criar mais desemprego. No caso da reforma trabalhista, ainda teve o agravante de algumas centrais sindicais caírem no “conto da MP”, pois o governo prometeu uma medida provisória que mitigaria alguns impactos da reforma trabalhista e regularia a contribuição sindical. Mais uma mentira que neste caso resultou na aprovação da reforma.

E de outro lado também, a defesa da CLT não tem um apelo tão massivo quanto o direito à aposentadoria, pois metade da força de trabalho no Brasil se encontra fora deste sistema de proteção trabalhista, são milhões de trabalhadores no desemprego ou na informalidade, além da CLT não regular as relações no serviço público. Com a previdência é diferente, boa parte dos trabalhadores brasileiros que não se aposentaram ainda sonham em se aposentar um dia, além dela atingir em cheio setores do funcionalismo público que estão em condições melhores de organização sindical dado ao fator da estabilidade no emprego, por isso a resistência foi maior e até então o governo perdeu essa queda de braço, ao anunciar que ficará para depois das eleições a PEC do fim da aposentadoria.

Quanto aos prejuízos para o debate eles são totais, porque o governo declarou guerra aos trabalhadores, não existe nenhum tipo de civilidade na forma como o governo encara essas agendas, não existe nenhum tipo de diálogo possível, a coisa só se dá na base da truculência e da mentira por parte do governo.

MARUIM: Quais são algumas das propostas sugeridas pelos Economistas pelo Brasil para enfrentar a crise econômica na construção de uma sociedade mais justa ?

Sammer: Em primeiro lugar defendemos que o país assuma um projeto de caráter nacional e popular, é importante sabermos projetar o que queremos do Brasil para sair da crise e se realizar como nação, olhar para o presente pensando no futuro. Para sua realização, o que defendemos de maneira essencial é atacar os privilégios, desconcentrar a riqueza que hoje está nas mãos de poucos. É muito assustador e revoltante que 6 brasileiros tenham a riqueza igual a de 100 milhões de brasileiros, é isso que devemos enfrentar. Para isso propusemos algumas medidas no manifesto dos economistas, como a taxação de grandes fortunas, mudança da política econômica com redução de juros, controle de câmbio e capitais, controle nacional de setores estratégicos como energia, minério, petróleo, comunicação, água e química, dentre outras medidas. Ou seja, trata-se de retomar um sentido de coletividade para construirmos outro marco de sociabilidade, em que as maiorias sejam o centro das atenções, da viabilidade e viabilização de uma vida repleta de alegria, soberania e dignidade. (Maruim.org)